O segundo fôlego de Amadeo
E, de repente, da noite se fez dia. Das sombras espraiadas por um tempo perdido no seu próprio labirinto, jorrou alguma luz. Um olhar novo e diferente desabrocha na contemplação do que parecia envelhecido e tolhido pela sua própria inércia. Era sexta-feira ao fim da tarde e soavam os primeiros acordes dos primeiros concertos do festival MIMO no claustro do Museu Amadeo Souza-Cardoso, em Amarante. Enquanto Marta Pereira da Costa seduzia pela sua forma única de dedilhar a guitarra, ou o jovem norte-americano Mattew Whitaker mostrava o porquê de tantos o considerarem um prodígio ao piano, houve quem, com os ouvidos ainda no exterior, optasse por deitar um olhar atento à fantástica proposta espalhada por algumas salas do interior do Museu, dedicada ao Modernismo na pintura portuguesa a partir da coleção do banco Millenium BCP.
Materializava-se aí a ideia da noite que se faz dia e do jorrar de luz onde antes havia uma espécie de escuridão. A ideia de uma exposição, inédita no contexto das múltiplas vertentes do próprio festival, terá sido vista por milhares de pessoas ao longo do último fim-de-semana, e esse não terá sido um dos menores contributos do MIMO para o que se percebe começa a ser uma nova afirmação de Amarante como polo de atração cultural.
O decisivo empurrão está dado, através de uma iniciativa que, nem se esgota nas múltiplas propostas musicais, nem define limites para o que pode ser o seu envolvimento com as distintas formas de expressão artística.
O problema está em perceber se a dinâmica política e cultural da cidade está disponível ou tem condições para acompanhar um ritmo e um desafio cujos horizontes não se compadecem com o envelhecimento de conceitos, tantas vezes enredados em inércias fatais.
Daí a importância desta exposição. Desde logo pelo conteúdo. Comissariada pela historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, inclui mais de meia centena de obras de 15 artistas portugueses nascidos a partir dos anos de 80 do século XIX. Estão, entre eles, António Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Viana, Almada Negreiros, Mário Eloy, Júlio, Dominguez Alvarez ou Dordio Gomes.
No texto do catálogo, de leitura indispensável para contextualizar, não apenas um acervo construído a partir das ligações, fusões e movimentações entre diferentes instituições bancárias, como para perceber “os valores plásticos que definem” o modernismo português, Raquel Henriques da Silva procede a uma leitura da qual resulta uma perspetiva geral sobre os diferentes modernismos contidos na coleção.
Na sua glória, no rigor com que está montada, na qualidade estética de toda a sua conceção e percurso, a exposição acaba por, ainda que involuntariamente, desnudar as óbvias insuficiências de um museu que, se teve em tempos grande protagonismo, e não apenas numa dimensão regional, terá perdido fulgor e capacidade de manter Amarante no mapa de um roteiro cultural rico de figuras ímpares da cultura portuguesa, como António Carneiro e Amadeo, mas também Teixeira de Pascoaes, Agustina Bessa Luís, ou ainda Alexandre Pinheiro Torres.
Se outros pretextos não existissem, o MIMO, caso haja vontade e capacidade de replicar o modelo expositivo este ano ensaiado, pode ser a decisiva plataforma de relançamento de uma estrutura museológica que não pode viver apenas do seu passado e ancorada no nome do seu patrono.
Para isso precisa de espaço. O museu tem de crescer em dimensão física e definir critérios rigorosos para um programa cultural e de exposições. Tem de rejeitar modelos expositivos como os ainda visíveis para quem termina a visita dos Modernistas e logo depara com um salão transformado num amontoado de obras que se anulam umas às outras.
Torna-se evidente a necessidade de criação de novas áreas, como meio para a projeção de uma outra visibilidade, por exemplo a partir do Prémio Amadeo Souza-Cardoso.
Um museu que tem no seu acervo a obra de um dos maiores pintores portugueses do século XX, tem de ousar ir mais longe. Tem de conseguir acordos de cooperação com colecionadores privados ou até com a Fundação Calouste Gulbenkian para, ao colocar em Amarante obras de Amadeo em depósito, contribuir assim para uma efetiva descentralização e para um acesso de novos públicos a momentos marcantes da pintura portuguesa do século XX.
Amarante está a trilhar um caminho novo, não isento de riscos. O desafio maior, agora, está em saber arquitetar uma espécie de segundo fôlego para o Museu Amadeo Souza-Cardoso, de forma a construir uma centralidade da qual a cidade muito poderá beneficiar, ao tirar partido da circunstância de serem escassos, em Portugal, os espaços dedicados à arte moderna e contemporânea.