Jards Macalé abre turnê europeia com concerto em Amarante
Por Deborah Dumar
Foto: Divulgação
Compositor, arranjador e exímio violonista, formado na melhor tradição das músicas popular e erudita, Jards Macalé vive um período de reconhecimento e grande visibilidade de sua obra. Antenado e inquieto, vem atuando ao lado da nova geração de músicos em apresentações lotadas por jovens. Autor de sucessos, tem canções gravadas por grandes nomes da música brasileira, a exemplo de Maria Bethânia, Gal Costa, Elizeth Cardoso, Nara Leão e Luiz Melodia.
No MIMO Festival, o artista carioca apresentará as composições mais marcantes de sua trajetória – o megahit “Vapor barato” (feita em parceria com Waly Salomão e regravada pelo Rappa), “Hotel das Estrelas” e Mal secreto” (Duda Machado), “Let’s play that” (Torquato Neto), “Farinha do desprezo” e “Movimento dos barcos” (Capinam). Ele fará concerto no dia 21 de julho, no Museu Amadeo de Souza-Cardoso, acompanhado por Vitor Gottardi (guitarra), Pedro Dantas (baixo) e Maurício Calmon (bateria).
Sempre ligado à vanguarda cultural, fez algumas atuações em filmes, escreveu trilhas sonoras e tem produções dedicadas à sua carreira. O Festival MIMO de Cinema exibirá o premiado documentário “Jards”, de Eryk Rocha, e o curta “Tira os óculos e recolhe o homem”, de André Sampaio. Depois de Amarante, Jards Macalé levará este concerto a Porto, Lisboa, Londres e Berlim.
Participando ativamente do MIMO Festival desde 2010, fazendo shows, só ou com banda, palestras ou apresentando filmes, Macalé destaca que “estar em tantos lugares, cidades históricas, com tantos músicos especiais de tantas nacionalidades, trocando experiências sonoras, instrumentais e intelectuais é, no mínimo, um momento extraordinário de vida”.
Do sonho de ser padre à descoberta do violão
Filho de um militar, da Marinha de Guerra, de quem herdou o nome, o artista conta que, quando era pequeno, queria ser padre, mas era uma bobagem de criança. Nascido na Tijuca, em uma casa da Rua Tucuruí, era vizinho dos célebres cantores Gilda de Abreu e Vicente Celestino. O pai tocava acordeão, era amante de óperas e de música erudita e o levava ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, “ainda de calças curtas”. A mãe, Lygia, ouvia os grandes cantores na Rádio Nacional, emissora de grande audiência na época, tocava piano de ouvido e “cantava muito bonito”.
Como o irmão caçula, Roberto, fazia coro nas rodas de música da casa. A avó, Hilda Anet, funcionária de uma empresa estrangeira, harmonizava o ambiente familiar. “Era uma doce criatura, que não deixava que a casa virasse um território militar”, relembra, rindo. Era garoto ainda quando a família se mudou para morar em um apartamento que a avó adquiriu no bairro nobre de Ipanema.
Porém, viver à beira-mar não foi a única experiência de impacto em sua vida. Além da Época de Ouro da rádio brasileira, a TV chegava ao Brasil em 1950 e, com ela, uma avalanche de informações que absorvia através dos programas a que assistia no aparelho trazido pelo pai dos Estados Unidos.
Uma vizinha dava aulas de violão e aquilo chamou a sua atenção. Sugeriu à mãe que comprasse para ele o instrumento de um bêbado das redondezas e, da área comum aos apartamentos, escutava as lições e tentava reproduzir os sons no primeiro violão, conta. Tanto fez que acabou se tornando o novo aluno da vizinha. Descobria, naquele momento, a sua verdadeira vocação.
Em entrevista à revista “Rolling Stones Brasil”, por ocasião de seus 70 anos, conta que se tornou copista da famosa Orquestra Tabajara, do maestro Severino Araújo, dada a amizade com o filho dele, o baterista Chiquinho, com quem formou nos anos 1960 o Dois no Balanço. “Fui aprender a ler e a escrever músicas copiando partituras (…) distribuía as partituras que tinha copiado nas estantes dos músicos. Aí, sentava na plateia para ouvir, na minha fantasia, o arranjo que eu tinha escrito, e que, na realidade, eu tinha copiado [risos]. Foi assim que aprendi a noção de harmonia, de arranjo de metais, de percussão, tudo”, afirma ele, que, através do maestro Edino Krieger, também se tornou copista da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Por indicação do violonista Turíbio Santos, que se preparava para concorrer ao Festival Internacional de Violão, em Paris, ingressou na Pro Arte na adolescência para estudar violão com Jodacil Damasceno. Aprendeu piano e orquestração com Guerra-Peixe, violoncelo com Peter Dauelsberg, regência com Mario Tavares, análise musical com Esther Scliar, canto com Fernanda Gianetti e ainda tinha aulas particulares com esses mestres da música. “Comecei a ficar apaixonado por violão e era um aluno aplicado. Fui aprendendo coisas maravilhosas com esses professores!”
Estreia profissional com Bethânia no ‘Opinião’
Foi na Praia de Ipanema que o torcedor do Flamengo ganhou o apelido de Macalé – uma referência ao pior jogador do Botafogo – por não ser, digamos assim, um craque no futebol. Por outro lado, fazia amizade com artistas que circulavam pelo bairro, passando a se enfronhar no meio musical e a frequentar ensaios dos consagrados Baden Powell e Os Cariocas. Na Churrascaria Pirajá, conheceu Vinicius de Moraes, Stanislaw Ponte Preta, Glauber Rocha, Rogério Duarte e outras personalidades.
Entre os novos amigos, estava o violonista Dori Caymmi – filho do célebre cantor e compositor baiano Dorival Caymmi – responsável pela direção musical e os arranjos do histórico musical “Opinião”, que estreou em 1964. Marco na resistência cultural à ditadura, foi assistido por mais de cem mil espectadores no Teatro de Arena e trazia no elenco representantes de diferentes segmentos da música brasileira, como a bossa-novista Nara Leão, o nordestino João do Vale e o sambista Zé Kéti. Em 1965, Macalé entraria no lugar do violonista Roberto Nascimento e Nara era substituída pela jovem intérprete Maria Bethânia, irmã de Caetano Veloso, recém-chegada da Bahia e que foi morar com a família dele, enquanto sua avó passava uma temporada na Europa. Os dois jovens artistas faziam ali a bem-sucedida estreia profissional, que se desdobrou em outros shows, como os da boate Cangaceiros, outro reduto da música em Copacabana. Aos poucos, ia se enturmando com os grandes da MPB, a exemplo de João Gilberto.
Artista não quis participar do movimento tropicalista
Apesar da proximidade com os cantores baianos e o artista plástico Hélio Oiticica – criador do parangolé “Tropicália”, que inspirou o nome do movimento e ajudou a consolidar a estética tropicalista (e de quem ganhou o penetrável “Macaléia”), decidiu não aderir ao Tropicalismo. Não por brigas, como se chegou a comentar, mas “porque estava interessado em outra estética, no estudo acadêmico do violão”, esclarece. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e se exilaram em Londres, em 1969.
No mesmo ano, Macalé surpreendeu o público com sua performance no IV Festival Internacional da Canção, apresentando “Gotham City”, dele e Capinan, onde criticavam o momento que o país enfrentava. Foi sonoramente vaiado pela plateia do Maracanãzinho e a repercussão na mídia foi imensa. “Dormimos anônimos e acordamos famosíssimos. Como dizia Nelson Rodrigues, só a vaia consagra”.
Saiu com o compacto duplo “Só morto” na ocasião, tocou em discos e shows de Gal Costa (que passou a interpretar suas músicas), como “Meu nome é Gal” (1969), “Legal” (1970) e “Fa-tal” (1971), quando a música “Vapor barato” estourou. A convite de Caetano, embarcou para Londres, para assumir a direção musical e tocar no antológico álbum “Transa” (1972) . No mesmo ano, lançou o primeiro LP, “Jards Macalé”.
Ainda nos anos de chumbo, organizou o show-manifesto “Banquete dos mendigos”, tendo convidado a nata da MPB para o concerto, realizado Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que integrava as comemorações da ONU pelos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a que compareceram 5 mil pessoas. Os artigos eram lidos entre as músicas pelos artistas convidados – Chico Buarque & MPB-4, Raul Seixas, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Edu Lobo, Johnny Alf, Gonzaguinha e outros. O show virou disco, que permaneceu censurado por anos.
Macalé lançou outros álbuns, como “Aprender a nadar” (1974), “Contrastes” (1977) e “Let’s play that” (1983), além do tributo a Kid Morengueira, de quem se tornou parceiro no samba de breque “Tira os óculos e recolhe o homem”. Com o CD “Jards Macalé” relançado em 2012, voltou a fazer uma série de shows e teve editada a caixa “Jards Macalé – Anos 70” (selo Discobertas, 2015). Naquele ano, gravou o primeiro DVD ao vivo, sob a direção de Rejane Zilles, no Theatro São Pedro (RS), com a participação de Luiz Melodia, Thaís Gulin e Zeca Baleiro.
Importantes colaborações para o cinema brasileiro
Ainda na década de 1970, através do amigo e diretor Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, Jards Macalé foi apresentado a um dos precursores do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos, que o convidou a escrever a trilha sonora e também a atuar em “Amuleto de Ogum” (1974), indicado à Palma de Ouro, em Cannes, na categoria “melhor diretor”, e em “Tenda dos milagres”, de 1977, baseado no romance homônimo de Jorge Amado, que chegou a ser indicado ao Urso de Ouro, do Festival de Berlim, e recebeu três prêmios no Festival de Brasília.
Macalé já participara das trilhas de “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade”, baseado na obra de Mário de Andrade, e de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha (ambos de 1969 e que figuram na lista dos “100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos”, da Associação Brasileira de Críticos de Cinema), além de outras importantes produções nacionais.
O artista teve sua vida e obra retratada nos filmes “Jards Macalé – Um morcego na porta principal”, de João Pimentel e Marco Abujamra (2008), e em “Jards”, de Eryk Rocha, ambos premiados no Festival do Rio. Atuou ainda em “Big jato”, de Claudio Assis, premiado no Festival de Brasília de 2015, e para o qual compôs a música de encerramento com o DJ Dolores.