Três Tristes Tigres faz trepidante volta ao passado
Por Deborah Dumar
Foto: Divulgação
A banda foi um marco na música pop portuguesa da década de 1990 e alcançou sucesso excepcional com o tema “O mundo a meus pés”. Depois de 13 anos longe dos palcos, a Três Tigres Tristes – que teve seu nome inspirado no trava-línguas “Três tigres tristes para três pratos de trigo. Três pratos de trigo para três tigres tristes” – ressurge vigorosamente no cenário português em concertos lotados.
Liderada pela vocalista Ana Deus e o guitarrista Alexandre Soares, a TTT apresentará, na segunda edição do MIMO Amarante, os sucessos do álbum “Guia espiritual” – considerado pela “Blitz” o melhor disco de 1996, e um dos melhores dos anos 1990 pelo público – e do terceiro CD de carreira, “Comum” (1998). Também em 1990, recebeu o prémio de melhor grupo nacional pela revista.
Neste concerto, que será realizado no Parque Ribeirinho, no dia 21 de julho, Ana (voz) e Alexandre (guitarra) desfilarão hits, como “Zap Canal”, “Colchão de água” e “Noites brancas”, acompanhados por Quico Serrano (teclados), João Pedro Coimbra (percussão) e Rui Martelo (baixo). Naturalmente, com arranjos que aproximam a interpretação à visão atual dos integrantes.
O regresso da TTT à cena e a excelente receptividade do público – em que se incluem aqueles que não eram nascidos ou aprendiam as primeiras palavras quando a banda vivia o seu auge – ganharam destaque na mídia portuguesa. Em entrevista ao site do MIMO, a cantora Ana Deus comenta como isso se deu, lembrando que os integrantes do grupo estão atuando em outros projetos.
“Existe desde o ano passado uma programação, no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, que reúne numa noite bandas mais antigas com bandas recentes. É o Porto Best Of, e o seu programador Miguel Guedes, teve a gentileza de me sondar para fazermos uma dessas noites. A banda já não estava ativa, mas, como continuo a trabalhar com dois dos músicos tigres no projeto Osso Vaidoso, não foi assim tão complicado juntar-mo-nos e montar o espetáculo. No entanto, foi trabalhoso, quase ‘arqueológico’ procurar os bancos de sons que usávamos na altura, mas compensou! A recepção do publico foi muito boa”.
Ao se referir a esta “trepidante viagem ao passado”, a crítica do jornal ”Público” destaca que “a voz de Ana Deus permanece imaculada, a guitarra de Alexandre Soares continua a espraiar-se como quer, como tão bem sabe, e, diga-se, as palavras de Regina Guimarães fazem hoje tanto ou mais sentido. João Pedro Coimbra, Quico Serrano e o baixista convidado Rui Pedro Martelo completam a formação ao vivo desta revisitação a ‘Guia espiritual’ e a alguns temas do sucessor ‘Comum’, que esteve longe de ser, e ainda bem, apenas uma transposição fiel das canções. E, sim, ainda houve tempo para um cheirinho de ‘Partes sensíveis’ — à despedida escutou-se uma versão algo descomprometida de ‘O mundo a meus pés’, muito bem acompanhada pelas vozes do público.”
Das colagens do gravador rasta à enorme popularidade
Desde 1987, a ex-vocalista do grupo pop Ban, Ana Deus, colaborava com a poetisa Regina Guimarães na autoria de canções para teatro e vídeo. Nos idos de 1990, conforme texto de apresentação da Três Tristes Tigres por Regina, nasce a banda, à volta de um gravador de cassettes rasca, em que as duas fabricavam informalmente colagens e canções.
Antes da formação que daria origem ao CD de estreia, “Partes sensíveis” (1993), “o jogo da escrita estendeu-se a Ricardo Serrano”, conta a letrista, que foi tida como integrante do grupo, apesar de não participar das apresentações da banda. “Não era normal, aliás acho que nunca conheci nenhuma, as bandas assumirem o autor das letras como membro. Na realidade, foi ela quem começou a germinar a ideia de fazer letras para mim”, explica a vocalista.
Os primeiros concertos, no bar Aniki-Bobó (com Ana Deus e a tecladista Paula Sousa ao vivo) assemelhavam-se a um cabaret pop, entre o poético e o corrosivo, descreve a escritora. A popularidade do tema “O mundo a meus pés”, carro-chefe do primeiro álbum, levou as edições seguintes a trazerem impressa na capa a imagem de Ana Deus.
Paula, ex-Repórter Estrábico, deixou o grupo e Alexandre Soares, que também colaborara no disco em homenagem ao cantor e compositor português António Variações (morto precocemente, aos 39 anos), em “Anjinho da guarda”, foi convidado a integrá-la.
O ingresso de Alexandre representou uma inequívoca guinada na sonoridade da TTT, devidamente registrada pela crítica, que considerou o segundo álbum, “Guia espiritual”, uma radical e criativa transformação da banda, “com a entrada em pleno de Alexandre Soares e a guitarra e a electrónica prima do trip hop a tomarem de assalto canções que obrigavam a pop a uma agilidade só recomendada a ginastas treinadas”.
Em 2001, chegou ao mercado a compilação “Visita de estudo” (2001), com novas versões de composições dos álbuns anteriores e trazendo, como novidade, “Coisas azuis”, feita para o espetáculo “Ferida consentida” (1999), que Ana Deus e Alexandre Soares montaram em torno do livro “Um beijo dado mais tarde”, de Maria Gabriela Llansol.
Tigres vêm se dedicando a variados projetos artísticos
Com o fim da banda, os tigres diversificaram suas atividades. Ana Deus, Alexandre Soares e Regina Guimarães permaneceram realizando projetos ligados também ao cinema, teatro e dança. Alexandre Soares, por exemplo, assina a trilha do filme “Ganhar a vida” (2001), de João Canijo, que traz a gravação de “Fome de femme”, com a banda.
Em 2000, o espetáculo “KITCHnet”, de Ana Deus e Regina Guimarães estreou. Dois anos depois, no projeto Quintas de Leitura, foi a vez de “Rhumor” – espetáculo que reúne textos de Regina e música de Ana Deus e Fernando Rodrigues – ser apresentado ao público. Ambas se reuniram em 2013 para lançar, no Porto e em Lisboa, o livro-CD “Roupa anterior”, com trabalhos musicais de Ana e Regina e imagens de Paulo Ansiães Monteiro.
Por sua vez, a cantora foi convidada a participar do ousado projeto “Amália revisited” (2005), ao lado de João Pedro Coimbra, gravando uma versão moderna para “Medo (Susto)”. Mas como o público reagiu ao ouvir um sucesso da mundialmente consagrada fadista com roupagem pop?
“Esse disco das versões da Amália foi muito pouco divulgado, ao contrário de outros que fiz com versões de António Variações ou de Adriano Correia de Oliveira. Mas nessa altura, agora será um pouquinho menos, os puristas do fado não terão gostado desses ‘atrevimentos’, enquanto que o público da pop sempre gosta que o artista se afaste da versão. Eu tentei brincar com o ‘Medo’, transformá-lo em susto de filme de terror. Foi uma ligeireza da nossa parte talvez, mas gostei muito de fazer. A Amália era muito particular, todos sabemos, imitar o sentimento da canção não me pareceu possível, muito menos com a idade e vida que eu tinha na altura. Ela era coerente, eu também o fui”, responde Ana Deus.
Em 2007, com Dead Combo, a cantora interpretou “Trova do vento que passa” (para o álbum “Adriano aqui e agora – O tributo”), sem falar na turbo-criação das atuações que, desde 2007, servem de fecho festivo ao evento Leitura Furiosa. A artista explica que colabora uma vez por ano, pelo menos, com este projeto, que reúne, ao longo de três dias, escritores com os chamados “zangados com a leitura”.
“São grupos de debate/conversa em instituições, como a prisão de menores, centros de recuperação de toxicodependentes, salas de apoio ao estudo de crianças em situações de carência. Dessas conversas, saem textos ou canções. Este ano, também colaborou conosco um cantautor do Rio de Janeiro, Luca Argel”.
A partir de 2010, Ana e Alexandre formaram o coletivo Osso Vaidoso (do qual Regina participa), com álbuns editados em 2011 e 2016 e uma forte componente ligada à poesia e a instrumentação minimalista, baseada em trabalho de guitarra e eletrônica. E, apesar do sucesso que a Três Tristes Tigres vem causando nesses poucos concertos, a artista descarta a ideia de retomar a carreira da banda:
“Depois de tanto trabalho, faz sentido fazer mais alguns espetáculos. Mas o que significa continuar um projeto? Fazer mais músicas. As canções eram feitas por mim e pelo Alexandre, por isso o futuro dos Tigres é o Osso. É o Osso do Tigre, por isso é tão vaidoso. O público mais jovem, que só conhecia o Osso, passou a conhecer este antepassado assim como o contrário, aqueles que nos acompanharam nos tempos tigres passaram a perceber que ainda por cá andamos. E, pelo que percebi o som passou bem para o público mais jovem. O presente é feito de tantas épocas, o revivalismo também é sempre moderno. E, na forma como abordamos os temas ao vivo, atravessamos essas barreiras temporais”, conclui.